quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Rodadas de Poema com Ferreira Gullar

De Ferreira Gullar
Poema Sujo – um fragmento: “Velocidades”
Parte II




(...)
Não tem a mesma velocidade o domingo
         que a sexta-feira com seu azáfama de compras
         fazendo aumentar o tráfego e o consumo
         de caldo de cana gelado,
                                    nem tem
         a mesma velocidade
         a açucena e a maré
com seu exército de borbulhas e ardentes caravelas
         a penetrar soturnamente o rio
         noutra lentidão que a do crepúsculo
         que, no alto,
         com sua grande engrenagem escangalhada
moía a luz.
                  Outra velocidade
tem Bizuza sentada no chão do quarto
         a dobrar os lençóis lavados e passados
         a ferro, arrumando-os na gaveta da cômoda, como
                se a vida fosse eterna.
                        E era
         naquele seu universo de almoços e temperos
         de folhas de louro e de pimenta-do-reino
         mastruz para tosse braba,
                           universo
         de panelas e canseiras entre as paredes da cozinha
         dentro de um surrado vestido de chita,
                                    enfim,
         onde batia o seu pequenino coração.
                    E se não era
         eterna a vida, dentro e fora do armário,
         o certo é que
         tendo cada coisa uma velocidade
                   (a do melado
                    escura, clara
                    a da água
                    a derramar-se)
         cada coisa se afastava
         desigualmente
         de sua possível eternidade.
                  Ou
                  se se quer
                  desigualmente
         a tecia
         na sua própria carne escura ou clara
         num transcorrer mais profundo que o da semana.
                  Por isso não é certo dize
         que é no domingo que melhor se vê
                  a cidade
         - as fachadas de azulejo, a Rua do Sol vazia
         as janelas trançadas no silêncio -
                  quando ela
                  parada
                  parece flutuar.


E que melhor se vê uma cidade
        quando - como Alcântara
        todos os habitantes se foram
e nada resta deles (sequer
        um espelho de aparador num daqueles
aposentos sem teto) - se não
        entre as ruínas
        a persistente certeza de que
        naquele chão
        onde agora crescem carrapichos
        eles efetivamente dançaram
        (e quase se ouvem vozes
        e gargalhadas
                que se acendem e apagam nas dobras da brisa)
                                 Mas


        se é espantoso pensar
        como tanta coisa sumiu, tantos
guarda-roupas e camas e mucamas
        tantas e tantas saias, anáguas,
        sapatos dos mais variados modelos
        arrastados pelo ar junto com as nuvens,
                                 a isso
        responde a manhã
        que
        com suas muitas e azuis velocidades
        segue em frente
                            alegre e sem memória.
 (...)


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