De Ferreira
Gullar
Poema Sujo –
um fragmento: “Velocidades”
Parte II
(...)
Não tem a mesma velocidade o domingo
que a sexta-feira com seu azáfama de compras
fazendo aumentar o tráfego e o consumo
de caldo de cana gelado,
nem tem
a mesma velocidade
a açucena e a maré
com seu exército de borbulhas e ardentes caravelas
a penetrar soturnamente o rio
noutra lentidão que a do crepúsculo
que, no alto,
com sua grande engrenagem escangalhada
moía a luz.
Outra velocidade
tem Bizuza sentada no chão do quarto
a dobrar os lençóis lavados e passados
a ferro, arrumando-os na gaveta da cômoda, como
se a vida fosse eterna.
E era
naquele seu universo de almoços e temperos
de folhas de louro e de pimenta-do-reino
mastruz para tosse braba,
universo
de panelas e canseiras entre as paredes da cozinha
dentro de um surrado vestido de chita,
enfim,
onde batia o seu pequenino coração.
E se não era
eterna a vida, dentro e fora do armário,
o certo é que
tendo cada coisa uma velocidade
(a do melado
escura, clara
a da água
a derramar-se)
cada coisa se afastava
desigualmente
de sua possível eternidade.
Ou
se se quer
desigualmente
a tecia
na sua própria carne escura ou clara
num transcorrer mais profundo que o da semana.
Por isso não é certo dize
que é no domingo que melhor se vê
a cidade
- as fachadas de azulejo, a Rua do Sol vazia
as janelas trançadas no silêncio -
quando ela
parada
parece flutuar.
E que melhor se vê uma cidade
quando - como Alcântara
todos os habitantes se foram
e nada resta deles (sequer
um espelho de aparador num daqueles
aposentos sem teto) - se não
entre as ruínas
a persistente certeza de que
naquele chão
onde agora crescem carrapichos
eles efetivamente dançaram
(e quase se ouvem vozes
e gargalhadas
que se acendem e apagam nas dobras da brisa)
Mas
se é espantoso pensar
como tanta coisa sumiu, tantos
guarda-roupas e camas e mucamas
tantas e tantas saias, anáguas,
sapatos dos mais variados modelos
arrastados pelo ar junto com as nuvens,
a isso
responde a manhã
que
com suas muitas e azuis velocidades
segue em frente
alegre e sem memória.
que a sexta-feira com seu azáfama de compras
fazendo aumentar o tráfego e o consumo
de caldo de cana gelado,
nem tem
a mesma velocidade
a açucena e a maré
com seu exército de borbulhas e ardentes caravelas
a penetrar soturnamente o rio
noutra lentidão que a do crepúsculo
que, no alto,
com sua grande engrenagem escangalhada
moía a luz.
Outra velocidade
tem Bizuza sentada no chão do quarto
a dobrar os lençóis lavados e passados
a ferro, arrumando-os na gaveta da cômoda, como
se a vida fosse eterna.
E era
naquele seu universo de almoços e temperos
de folhas de louro e de pimenta-do-reino
mastruz para tosse braba,
universo
de panelas e canseiras entre as paredes da cozinha
dentro de um surrado vestido de chita,
enfim,
onde batia o seu pequenino coração.
E se não era
eterna a vida, dentro e fora do armário,
o certo é que
tendo cada coisa uma velocidade
(a do melado
escura, clara
a da água
a derramar-se)
cada coisa se afastava
desigualmente
de sua possível eternidade.
Ou
se se quer
desigualmente
a tecia
na sua própria carne escura ou clara
num transcorrer mais profundo que o da semana.
Por isso não é certo dize
que é no domingo que melhor se vê
a cidade
- as fachadas de azulejo, a Rua do Sol vazia
as janelas trançadas no silêncio -
quando ela
parada
parece flutuar.
E que melhor se vê uma cidade
quando - como Alcântara
todos os habitantes se foram
e nada resta deles (sequer
um espelho de aparador num daqueles
aposentos sem teto) - se não
entre as ruínas
a persistente certeza de que
naquele chão
onde agora crescem carrapichos
eles efetivamente dançaram
(e quase se ouvem vozes
e gargalhadas
que se acendem e apagam nas dobras da brisa)
Mas
se é espantoso pensar
como tanta coisa sumiu, tantos
guarda-roupas e camas e mucamas
tantas e tantas saias, anáguas,
sapatos dos mais variados modelos
arrastados pelo ar junto com as nuvens,
a isso
responde a manhã
que
com suas muitas e azuis velocidades
segue em frente
alegre e sem memória.
(...)
estive aqui adorei o poema como sempre !!!
ResponderExcluirestive aqui adorei o poema como sempre !!!
ResponderExcluir