segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Rodadas de Poema com Ferreira Gullar



De Ferreira Gullar
Ano Novo



Meia noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.

Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça:
nada ali indica
que um ano novo começa.

E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.

Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta)



GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1997.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Rodadas de Poema com Ferreira Gullar



De Ferreira Gullar
Cantiga para não morrer



Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve. 

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração. 

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar. 

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Rodadas de Poema com Ferreira Gullar



De Ferreira Gullar
Traduzir-se


Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Rodadas de Poema com Ferreira Gullar



De Ferreira Gullar
Cantiga para não morrer



Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Rodadas de Poema com Ferreira Gullar



De Ferreira Gullar
Poema Sujo – um fragmento: “Velocidades”
Parte VIII



(...)
                     O homem está na cidade
                     como uma coisa está em outra
                     e a cidade está no homem
                     que está em outra cidade


                     mas variados são os modos
                     como uma coisa
                     está em outra coisa: 
                     o homem, por exemplo, não está na cidade
                     como uma árvore está
                     em qualquer outra 
                     nem como uma árvore 
                     está em qualquer uma de suas folhas 
                     (mesmo rolando longe dela)
                     O homem não está na cidade
                     como uma árvore está num livro
                     quando um vento ali a folheia


            a cidade está no homem
            mas não da mesma maneira 
            que um pássaro está numa árvore 
            não da mesma maneira que um pássaro 
            (a imagem dele) 
            está/va na água
                     e nem da mesma maneira 
            que o susto do pássaro
            está no pássaro que eu escrevo


            a cidade está no homem 
            quase como a árvore voa 
            no pássaro que a deixa


            cada coisa está em outra 
            de sua própria maneira
            e de maneira distinta
            de como está em si mesma


            a cidade não está no homem 
            do mesmo modo que em sua 
            quitandas praças e ruas.