terça-feira, 5 de março de 2013

Rodadas de Poemas com Clarice Lispector



De Clarice Lispector
Rifa-se um coração



Rifa-se um coração quase novo.
Um coração idealista.
Um coração como poucos.
Um coração à moda antiga.
Um coração moleque 
que insiste em pregar peças no seu usuário.
Rifa-se um coração 
que na realidade está um pouco usado, meio  calejado,
muito machucado e que teima em alimentar sonhos 
e cultivar ilusões.
Um pouco inconseqüente 
que nunca desiste de acreditar nas pessoas.
Um leviano e precipitado coração 
que acha que Tim Maia estava certo quando
escreveu... 
"...não quero dinheiro, eu quero amor sincero, é isso que eu
espero...".
Um idealista...
Um verdadeiro sonhador...
Rifa-se um coração que nunca aprende.
Que não endurece, e mantém sempre viva a esperança de ser feliz, 
sendo simples e natural.
Um coração insensato 
que comanda o racional 
sendo louco o suficiente para se apaixonar.
Um furioso suicida 
que vive procurando relações e emoções verdadeiras.
Rifa-se um coração 
que insiste em cometer sempre os mesmos erros.
Esse coração que erra, briga, se expõe.
Perde o juízo por completo em nome de causas e paixões.
Sai do sério e, às vezes revê suas posições 
arrependido de palavras e gestos.
Este coração tantas vezes incompreendido.
Tantas vezes provocado.
Tantas vezes impulsivo.
Rifa-se este desequilibrado emocional 
que abre sorrisos tão largos 
que quase dá pra engolir as orelhas,
mas que também arranca lágrimas e faz murchar o rosto.
Um coração para ser alugado, 
ou mesmo utilizado por quem gosta de emoções fortes.
Um órgão abestado 
indicado apenas para quem quer viver intensamente 
contra indicado para os que apenas pretendem passar pela vida 
matando o tempo,
defendendo-se das emoções.
Rifa-se um coração 
tão inocente que se mostra sem armaduras 
e deixa louco o seu usuário.
Um coração que quando parar de bater 
ouvirá o seu usuário dizer para São Pedro 
na hora da prestação de contas:
"O Senhor pode conferir. 
Eu fiz tudo certo, só errei quando coloquei sentimento. 
Só fiz bobagens e me dei mal 
quando ouvi este louco coração de criança 
que insiste em não endurecer 
e se recusa a envelhecer"
Rifa-se um coração, 
ou mesmo troca-se por outro 
que tenha um pouco mais de juízo.
Um órgão mais fiel ao seu usuário.
Um amigo do peito que não maltrate tanto o ser que o abriga.
Um coração que não seja tão inconsequente.
Rifa-se um coração cego, surdo e mudo, 
mas que incomoda um bocado.
Um verdadeiro caçador de aventuras que ainda não foi adotado, provavelmente, por se recusar 
a cultivar ares selvagens ou racionais, 
por não querer perder o estilo.
Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree.
Um simples coração humano.
Um impulsivo membro de comportamento 
até meio ultrapassado.
Um modelo cheio de defeitos 
que mesmo estando fora do mercado, 
faz questão de não se modernizar, 
 mas vez por outra, constrange o corpo que o domina.
Um velho coração 
que convence seu usuário a publicar seus segredos 
e a ter a
petulância de se aventurar como poeta.

2 comentários:

  1. Lindíssimo, Gerlane! Obrigado por compartilhar!

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  2. Que delíciosa leitura. Clarice era e continua sendo maravilhosa. Ah coração, maluquinho, desobediente, indomável...
    http://poesiasesonetos.blogspot.com.br

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