Os poemas secretos de Manuel Bandeira
Textos
lacrados há 35 anos, arquivados na Fundação Casa de Rui Barbosa, são abertos
MARCELO
BORTOLOTI
Entre os manuscritos de Manuel Bandeira
arquivados na Fundação
Casa de Rui Barbosa, os poemas abaixo estavam lacrados há 35
anos, e também foram abertos agora por determinação da CGU, depois de um pedido de
ÉPOCA através da Lei de
Acesso à Informação. Os versos revelam a verve satírica de
Bandeira, e expõem disputas e inimizades no meio intelectual da época. O poeta
remeteu alguns destes epigramas a amigos próximos, e mais de um deles chegou a
circular de mão em mão entre seus conhecidos. Quase 50 anos depois da morte de
Manuel Bandeira, já era o momento deles virem a público. Vários dos poemas não
têm título.
*
Façam-me uma estátua incrível
De algum novo Donatello.
O mais equestre possível:
Eu montado em Mário Melo!
CONTEXTO: Mário Melo foi um historiador
e jornalista pernambucano, que morreu em 1959. Famoso defensor
dos monumentos históricos do seu Estado natal, ele entrou numa polêmica com Manuel Bandeira na década de 1950. Naquela época, a Prefeitura do Recife
planejava erguer em praça pública um busto
em homenagem a Bandeira. Mario Melo foi uma das principais vozes contrárias ao
projeto, alegando que a lei proibia homenagear pessoas vivas. Bandeira nunca se
manifestou publicamente sobre a polêmica, mas nos bastidores escreveu estes
versos ridicularizando
seu oponente. Quando ele morreu, Bandeira prestou homenagem ao jornalista na Academia Brasileira de Letras,
como lembra o historiador Edson Nery
da Fonseca.
*
E se és, Faustino, veado,
Bem poderás ser chamado
Pelos a quem dás ou deras
Ou darás, Faustino amado,
Mário veado de veras!
CONTEXTO: Mário Faustino era um poeta e
crítico literário piauiense, que morreu num desastre aéreo aos
32 anos de idade. Ficou muito conhecido na segunda metade dos anos 1950, quando
editou uma página literária no
Jornal do Brasil, em que
publicava poemas de novos
autores e também de poetas
consagrados. Não há notícias sobre qualquer desavença ocorrida
com Manuel Bandeira, embora a posição de Faustino como editor que selecionava o
que era ou não publicado no jornal, o colocava em confronto direto com a
vaidade dos escritores da época. Por ser um tipo delicado, que não andava com
mulheres, pesava sobre ele uma nunca esclarecida fama de homossexual.
*Mulata bonita um dia
Por um mau jeito se peida:
Sua mulata é a Baía;
O peido, Renato Almeida.
CONTEXTO: Renato
Almeida foi um pintor
mineiro que retratou, entre outras coisas, paisagens baianas. Este
epigrama provavelmente circulou entre os amigos de Bandeira nos anos 1920. Em
carta a Mário de Andrade de abril de 1927, o poeta fala de sua implicância com
o pintor: “Cuidado também com o Renato. Estou convencido que é ruinzinho. Na
Bahia vi documentos tristes a respeito dele. E que bobagem ele escreveu sobre a
terra, falando na 'sensibilidade de moderno' dele que prefere avenidas e
arranha-céus. Quando saiu a entrevista dele (...) fiquei tão safado que
desfechei o epigrama. Naturalmente você deve ter lido aí”.
*
Capelinha do
padre Faria-Abaixo, abaixo as capelas!
Gritava o padre Faria.
Mas não conta o padre entre elas
A da sua freguesia.
CONTEXTO: O padre João
de Faria Fialho nasceu no Estado de São Paulo no século XVII, e
foi um capelão que participou de diversas expedições em busca de esmeraldas.
Ficou rico explorando ouro em Minas Gerais,
e foi figura importante no desenvolvimento de Ouro Preto. A Capela do Padre Faria é uma das
igrejas tratadas por Manuel Bandeira em seu Guia de Ouro
Preto, publicado em 1938. Este parece ser um epigrama de temática
histórica, sem justificativa para ter sido lacrado com os demais.
*
Como deve
chamar-se o que sublimaSua pérfida pessoa e as mais difama?
É Sílvio Julio de Albuquerque Lima
Ou Sílvio Julio de Albuquerque Lama?
CONTEXTO: Sílvio Julio
foi historiador
e professor universitário dedicado ao estudo da América Latina.
Foi contemporâneo de Manuel
Bandeira na Faculdade
Nacional de Filosofia, quando dava aulas de História da
América, enquanto Bandeira era professor de Literatura Hispano-Americana. Como
os temas eram próximos, é possível que os dois convivessem no ambiente
acadêmico, nem sempre de forma harmoniosa, como deixa claro o poema.
Além dos
poemas de Manuel Bandeira, entre os documentos revelados nesta semana, está uma
carta do amigo do autor e escritor Mário de Andrade. Ela é o primeiro texto
divulgado no qual Mário de Andrade refere-se aos comentários sobre sua
homossexualidade (leia a carta
de Mário de Andrade). Parte da correspondência há havia sido divulgada por
Bandeira, mas a parte sobre a homossexualidade fora suprimida.